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Acervo - Blog Luiz Flávio Gomes

Mulheres na política ou laranjas? Ponderações sobre nossa modernidade arcaica.

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Brumadinho, Mariana, Museu Nacional no Rio de Janeiro, Centro de Treinamento do Flamengo, helicóptero sem licença que matou Boechat, donos de partidos que afirmam que a “política não é espaço para as mulheres” e por aí vão o morticínio e as barbaridades da velha ordem. Quanto desleixo, quanto atraso na nossa modernidade!

Todos acreditam no futuro da nação, mas quase ninguém quer saber de cumprir a Constituição (Legião Urbana-Renato Russo) nem de se adequar às exigências da civilização. Como combater a cultura do improviso se o país [as elites podres do poder, marcadamente] é o rei da gambiarra? (ver Mariliz P. Jorge, Folha 14/2/19).

O Brasil moderno, em termos de governança e gestão, tanto pública como privada, ainda é um país muito arcaico. Com que estupefação desconcertante estamos vendo agora as relações cordiais nefastas, no sentido de Sérgio Buarque de Holanda (ver Raízes do Brasil), envolvendo o núcleo privado do presidente com temáticas de Estado, ao que os editoriais estão denominando de “filhocracia” (Folha) ou “filhotismo” (Estadão).

Nem sequer conseguimos separar nossa casa e seu quintal dos interesses do Estado. Em pleno século 21, todos nos julgamos barões (personalismo) e procuramos preservar as relações familiares, mesmo quando se trata da administração pública. A emoção sobrepuja superlativamente os escombros empoeirados da razão! Até quando continuaremos governados por corruptos ou por métodos e estratégias reconhecidamente atrasados?

A morosidade e a manipulação do caso Queiróz, envolvendo desvios de verba parlamentar na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro por meio da “caixinha” ou “rachadinha”, denigrem até os ossos as nossas frágeis instituições. Um procurador chegou ao disparate de querer encerrar a apuração sem nenhuma diligência (diz a Folha, 14/2/19). A apuração sobre o gabinete de Flávio Bolsonaro perdeu ritmo durante as eleições (Folha, 12/2/19).

Vários partidos estão implicados com desvios do fundo partidário, que são verbas públicas, a partir de um grande esquema de candidaturas “laranja” de mulheres em diferentes estados. Potenciais laranjas levaram R$ 15 milhões de recursos públicos em 14 partidos (ver Folha, 15/2/19).

Por trás da misoginia encontra-se a matriz de todo o esquema. Falcatruas e fraudes em série. Várias candidatas, a quem foram “destinados recursos oficiais”, não conseguiram sequer mais que duas ou três centenas de votos.

O exercício de rapinagem de verbas públicas de campanha por intermédio de candidatura laranja de mulheres demonstra o papel insignificante que alguns partidos atribuem a elas no debate público. De acordo com o TSE, dos 513 deputados federais eleitos em outubro de 2018, 77 apenas são mulheres. Esses 15% não chegam nem perto dos 51,7% de mulheres na sociedade brasileira. E é metade da média na América Latina.

Dados que se somam a outros grupos, constitucionalmente contemplados e que não podem ser discriminados (como vem sublinhando o ministro Celso de Mello), como os negros, indígenas, população LGBT e trabalhadores, também pouco representados no Congresso Nacional.

Os partidos políticos não podem ser um grande negócio entre amigos, sem nenhuma organicidade ou rastro social e ideológico. Nossa cultura política foi forjada, de um lado, a partir da escravatura, dos velhos latifúndios e das microrrelações de poder local, e, de outro, a partir da República, com base nas idiossincrasias de algumas corporações.

A síntese disso tudo é que temos uma tradição política muito autoritária, paternalista, patriarcal e violenta, que não se compatibiliza com as melhores democracias do mundo, em sentido amplo e participativo. Em diversos momentos da história isso ficou claro, como nos episódios de Canudos (1896-1897) e do Contestado (1912-1916) ou mesmo nas várias intervenções autoritárias.

Quanto à participação das mulheres na política, as suas lutas sociais são exemplos de resistência e questionamento desse estado de coisas. Não apenas conquistaram o direito ao voto em 1932, como elegeram a primeira parlamentar Constituinte no ano seguinte, a médica paulista Carlota Pereira de Queirós (1892-1982), reeleita deputada federal em 1934 ao lado da zoóloga e feminista Bertha Lutz (1894-1976).

Com inteligência e persistência essas pioneiras, juntamente com tantas outras mulheres que já fizeram e que estão fazendo história, participaram ativamente na batalha cotidiana pela consolidação de direitos, hoje comuns a todas, como a licença maternidade, a igualdade salarial (conquistada na lei, mas não na prática), a regulação da jornada de trabalho, dentre outros (ver, de Gláucia Fraccaro, Os direitos das mulheres: feminismo e trabalho no Brasil, 1917-1937, FGV, 2018).

É correto afirmar que as lutas políticas, as pequenas batalhas cotidianas movem a sociedade. Hoje, as mulheres, embora longe do ideal, já ocupam ou ocuparam lugares antes inimagináveis.

Independente do viés ideológico, é fundamental quebrar a lógica patriarcal que organiza nosso sistema social e político desde os tempos do império. A sociedade brasileira é plural e o espaço da política, incluindo a partidária, deve ser usado para que possamos debater ideias, discordar, respeitar posições e tentar construir consensos, como é saudável em qualquer democracia.

Manipular candidaturas de mulheres revela um aspecto do lado arcaico da nossa cultura política, que passa pela rapinagem dos recursos públicos e pelos interesses familiares nas coisas do Estado em conluio com setores do empresariado.

LUIZ FLÁVIO GOMES, professor, jurista e Deputado Federal Contra a Corrupção. 

RAFAEL PEREIRA, professor e pesquisador, Doutor em História pela Unicamp. É autor de “A morte do Homem Cordial: trajetória e memória na invenção de um personagem (Sérgio Buarque de Holanda, 1902-1982)”, Paco Editorial, 2016.

Comentários

  1. Wallace Taylor disse:

    INTERESSANTE AS PONDERAÇÕES, POIS HÁ MUITA MANOBRA ESCUSA NESSA QUESTÃO, QUANTO ÀS CANDIDATURAS LARANJAS, INFELIZMENTE POR TODO BRASIL.

  2. José Bonifácio da silva disse:

    Com vistas na superação desse estado retrógrado é que elegemos representantes parlamentares pessoas com o seu perfil e, nos quais, estamos apostando todas nossas fichas. Parabéns por mais esse ponderado e esclarecedor artigo.

  3. Tomaz Elias Robinson disse:

    Quando o Sr.. coloca no seu artigo “A síntese disso tudo é que temos uma tradição política muito autoritária, paternalista, patriarcal e violenta, que não se compatibiliza com as melhores democracias do mundo, em sentido amplo e participativo”., deixa bem claro no meu ponto de vista a forma de se fazer politica e de se tratar a sociedade, incentivando a acreditarem que há “Salvadores da Pátria” e “Pai dos Pobres” . A idéia básica é criar uma imagem da politica onde aqueles que são eleitos passam a fazer favores para o povo, a agir com generosidade ao conseguir “verba” e benfeitorias para os municipios , “remédio gratis” , “facilidade de ingresso em faculdades pagas” não deixando claro que as “verbas”,os remédios os financiamentos da juros subsidiados, nada mais são do que o resultado dos impostos que são recolhidos de todos, mesmos aquels que não pagam o “famigerado” Imposto de Renda e que a execução de benfeitorias, nada mais é do que a obrigação daquels que foram eleitos

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