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Acervo - Blog Luiz Flávio Gomes

O aventureiro e o trabalhador: vícios são do Estado e virtudes são do Mercado?

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Na medida em que o Mercado (as elites econômicas e financeiras, que financiam as campanhas eleitorais e que contam com acesso ao governo) sequestrou grande parcela do Estado, tornou-se muito questionável a ideologia corrente no Brasil de que o Estado é o demônio aventureiro e o Mercado é o santo trabalhador.

Vendo-se o genocídio ambiental gerado pela Vale, o departamento de corrupção da Odebrecht, as múltiplas falcatruas da JBS, o escândalo mundial da Volkswagen, as lavagens de dinheiro de vários bancos na Suíça, a começar pelo Credit Suisse (que lavou muito dinheiro roubado da Petrobras), o massacre dos jovens no centro de treinamento do Flamengo, as mortes na boate Kiss, a corrupção das empreiteiras punidas pela Lava Jato, a histórica bandidagem da Siemens (hoje recuperada), as empresas “X” de Eike Batista e por aí vai… Vendo tudo isso, você ainda acredita na falsidade de que os vícios estão mesmo somente no Estado, nos políticos, na política, nos agentes públicos, enquanto as virtudes pertencem ao mundo asséptico e intocável do Mercado? Seria o Estado e os políticos os aventureiros e o Mercado o trabalhador exemplar?

As tipologias do aventureiro e do trabalhador foram pela primeira vez utilizadas por Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) para explicar o processo de colonização do Brasil, buscando respostas às demandas de sua época. Até hoje o tema continua polêmico. De matriz weberiana, esses tipos ideais narrados em Raízes do Brasil, publicado pela primeira vez em 1936, são hoje criticados, pois, ajudam a mascarar, em nome da virtude e do vício, o que entendemos por corrupção e ineficiência do Estado e eficiência e honestidade do Mercado.

As empresas que compõem as elites bandidas do poder não seriam corruptas? Elas atuam sempre com exemplar eficiência, cumprindo todas as regras de prevenção de acidentes, evitando mortes de terceiros e de seu conjunto de trabalhadores? Tudo isso é atribuído exclusivamente ao Estado, ineficaz na fiscalização, enquanto o Mercado seria só eficiência e bom caráter, afinal, seria ele o gerador de empregos e do desenvolvimento do país. Você ainda acredita nisso?

As formas de vida coletiva, tal como expostas em Raízes do Brasil, podem ser vistas nas figuras do aventureiro (colonizadores portugueses, católicos, regidos pelo sentimento, pelo personalismo e pela ética da aventura, que é vista como sinônimo de vagabundagem) e do trabalhador (em geral os povos do norte europeu, protestantes, dotados de razão, impessoalidade e consideram-se de pureza racial superior, adeptos da ética capitalista do trabalho).

O primeiro grupo, de maneira alegórica é visto como aquele que busca colher sem ter de plantar, que ignora as fronteiras, sem limites, busca tirar o máximo com o menor esforço e observa o seu par como mesquinho. Em suma, busca a vantagem pessoal ou dos seus a todo o custo. O outro tipo, ao contrário, enxerga primeiro a dificuldade a vencer, procura tirar o máximo proveito daquilo que é considerado insignificante, possui uma visão mais limitada do mundo e adjetiva o seu oponente como vagabundo.

No período colonial predominou o tipo aventureiro. Todavia, no processo histórico de formação do Brasil, sem excluir os governos militares (ver os livros Estranhas Catedrais e A elite do atraso), o que se pode notar é, antes, uma simbiose entre a virtude e o vício.

Desde que as elites econômicas e financeiras do poder se juntaram para espoliar o país, por meio do Estado (sequestrando parte das suas instituições), seja envolvendo setores políticos nisso, seja manipulando outros agentes públicos, as virtudes e os vícios estão presentes tanto no Estado como no Mercado.

Não é possível separar o Mercado totalmente virtuoso de um lado e o Estado repletamente viciado de outro. Ambos contam com vícios e virtudes, porque ambos se juntaram para dominar a nação brasileira e o orçamento do país pelo loteamento de cargos, em detrimento de uma distribuição mais igualitária de renda e de serviços públicos de qualidade a todos os cidadãos.

Em outras palavras, as elites bandidas do poder (políticos que pautam os temas do país e executivos de grandes empresas que lhes favorecem a eleição), as que vivem para a bandidagem e a rapina, estão de passagem por aqui para levar vantagem sempre, para roubar, saquear, extorquir, espoliar, para não cumprir regras gerais e impessoais, ainda que disso resulte a morte de milhares de pessoas, como nos exemplos citados acima.

É por essas e outras que a demonização só do Estado é uma falsidade, na medida em que hoje o Estado já não existe sem boa parcela do Mercado. O Estado brasileiro, diminuído pela ganância das elites do poder, assim como por setores monopolistas da mídia que alimentam esse mito, mas que têm seus interesses privados por ele acolhidos (verbas publicitárias, empréstimos subsidiados, concessões públicas, propriedades cruzadas etc.), tornou-se um espaço aberto para velhos aventureiros e novos milicianos, sedentos de ocupar o vazio deixado por esse modelo entrecruzado e orquestrado pelas elites políticas e por empresários financiadores de campanhas.

A política, que não se restringe à prática partidária apenas ou às eleições, deve se tornar arma de combate diário na busca de uma melhor governança que possa garantir os direitos previstos em leis e pela Constituição, em favor daqueles que produzem riqueza, empresários honestos e inovadores e trabalhadores de ambos os setores, num equilíbrio mais justo e menos oneroso para o cidadão no que diz respeito aos vícios e as virtudes.

Por:

LUIZ FLÁVIO GOMES, professor, jurista e Deputado Federal – PSB/SP. Publicou 63 livros, sendo o seu mais recente “O Jogo Sujo da Corrupção” e RAFAEL PEREIRA, professor e pesquisador, Doutor em História pela Unicamp. É autor de “A morte do Homem Cordial: trajetória e memória na invenção de um personagem (Sérgio Buarque de Holanda, 1902-1982)”, Paco Editorial, 2016.

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